Adaptado de: Educação Continuada em Saúde. 2007
A doença de Huntington (DH), ao que parece, foi descrita pela primeira vez em 1860, pelo físico norueguês Johan Christian Lund, que lhe deu o nome de Chorea St. Vitus; entretanto, a repercussão do fato foi praticamente nula. Em 1872, um médico de Long Island (EUA), Dr. George Huntington, descreveu detalhadamente uma afecção que chamou de “coréia hereditária”. A história admite que pessoas identificadas como “bruxas” em épocas passadas, muitas delas eram, na verdade, vitimas dessa enfermidade.
A DH é uma enfermidade neurodegenerativa e hereditária, caracterizada pela presença de transtornos do movimento, distúrbios psiquiátricos e demência. Não existem dados concretos que nos permitam saber a prevalência da DH no Brasil. É uma doença presente em todo o mundo, porém algumas regiões do mundo, como, por exemplo, a região de Maracaibo, na Venezuela, apresenta uma alta incidência da doença. Nos EUA, a prevalência está estimada entre 5 e 10 casos por 100.000 habitantes.
A DH tem transmissão autossômica dominante com o gene chamado IT15, responsável pela doença localizadano braço curto do cromossomo 4 (4p16.3). A mutação responsável pela doença consiste em número excessivo de repetições anormais do trinucleotídeo CAG (citosina-adenosina-guanina). O número de repetições CAG considerado normal situa-se entre 9 e 34, enquanto na DH o número de repetições é geralmente maior que 40. As repetições entre 36 e 39 podem produzir tanto fenótipos normais quanto a doença de Huntington. Tem sido observado que, quanto maior o número de repetições dos trinucleotídeos CAG, mais precoce é a manifestação da doença. Em gerações sucessivas de pacientes com DH, o quadro clínico pode se manifestar cada vez mais cedo, sendo este fenômeno chamado de “antecipação”. Acredita-se que pacientes com repetições CAG superiores a 42 tenham penetrância de até 100%.
O gene mutante codifica uma proteína chamada huntingtina, que parece ter papel no transporte de vesículas no interior das células. Em decorrência das repetições CAG, há expansão poliglutamínica localizada próxima ao terminal-N da molécula protéica. As cadeias poliglutamínicas expandidas levam à fragmentação da proteína, que tende a se auto-agregar no interior da célula nervosa. A agregação de fragmentos protéicos causa a alteração no funcionamento neuronal e possivelmente tem papel no processo de morte neuronal. Do ponto de vista anatomopatológico, os pacientes apresentam uma atrofia grave dos núcleos caudados e putame e, em fases mais avançadas, a atrofia cortical também costuma ser muito pronunciada. Microscopicamente a marca da doença é a perda dos neurônios espinhosos médios (medium spiny neurons) em projeções do estriado para o pálido externo. Estes neurônios estriatais têm o GABA e a encefalina como seus principais neurotransmissores.
A DH é uma doença progressiva e letal caracterizada pela tríade de distúrbios do movimento (coréia, distonias, mioclonias e parkinsonismo), distúrbios comportamentais e demência. Os sintomas da doença podem aparecer em qualquer fase da vida, porém, na maioria dos casos, a doença se inicia entre a quarta e a quinta década. As formas chamadas de juvenis, variante de Westphal, se manifestam antes dos 20 anos de idade e correspondem a aproximadamente 5% a 10% do total de casos. É curioso observar que nas formas juvenis a presença do parkinsonismo é muito comum, aparecendo a DH no diagnóstico diferencial do parkinsonismo juvenil.
A DH inicia-se geralmente com distúrbios de comportamento, principalmente com irritabilidade, insônia ou sintomas depressivos. Muitas vezes o paciente recebe atenção psiquiátrica por longos períodos antes do aparecimento dos movimentos involuntários. Distúrbios afetivos podem aparecer em 50% dos pacientes e a ideação suicida também é muito comum. Quadros de psicose franca aparecem em aproximadamente 10% dos casos.
A demência na DH é dita como “subcortical”, pelo predomínio da bradifrenia, comprometimento da atenção, disfunções executivas, visuoespaciais e poucos sinais de envolvimento cortical como afasia, agnosia e apraxia. De modo geral, a demência aparece em fases mais avançadas da doença, sucedendo em alguns anos as manifestações psiquiátricas.
A coréia pode aparecer de maneira lenta e gradual ao longo dos anos até que se torna evidente. Geralmente são quadros generalizados, envolvendo a face, o tronco e membros. Parkinsonismo e distonia predominam nas formas mais precoces da doença, enquanto a coréia predomina nas formas tardias/clássicas da doença. Nos estágios tardios da doença os pacientes podem se tornar extremamente rígidos e acinéticos, praticamente sem evidência da síndrome coréica que caracterizava os estágios iniciais da doença. Outros sinais e sintomas comuns na DH são a disartria e disfagia, além de distúrbios da motilidade ocular, como diminuição dos movimentos sacádicos dos olhos, curiosamente utilizados em alguns estudos para diagnóstico pré-clínico da doença em pacientes portadores de mutação.
A doença pode ter uma evolução longa de até 30 anos em alguns casos, mas a morte ocorre principalmente em decorrência da imobilidade e infecções.
O diagnóstico da DH baseia-se essencialmente no quadro clínico característico, herança autossômica dominante e presença de atrofia do caudado nos exames de imagem. O diagnóstico de certeza da doença é feito somente por exame genético, porém o teste genético preditivo (TGP) para indivíduos sob risco de desenvolver a doença implica questões éticas, discriminatórias, jurídicas e religiosas.
O diagnóstico diferencial da DH é bastante amplo e inclui doenças como coréia familiar benigna, neuroacantocitose, atrofia dentatorubropalidoluisiana (DRPLA), doença de Machado-Joseph (SCA-3), doenças priônicas e uma doença reconhecida recentemente chamada Huntington-like 2. Outros distúrbios como a doença de Wilson, desordens mitocondriais e porfirias raramentepodem ter apresentações que em muito lembram a doença de Huntington.
Não existe até o presente momento tratamento curativo ou preventivo para a doença de Huntington. Os sintomas comportamentais e depressivos podem ser tratados com antidepressivos como os tricíclicos (amitriptilina, nortriptilina, clormipramina) e os inibidores seletivos da recaptação de serotonina (ISRS). Distúrbios de ansiedade e transtornos obsessivo-compulsivos podem ser adequadamente tratados com ISRS. Transtornos psicóticos podem ser manejados com antipsicóticos tradicionais, como o haloperidol, porém tem se optado pelos novos antipsicóticos chamados de “atípicos”, como clozapina, olanzapina e risperidona. O ácido valpróico tem sido utilizado nos casos de pacientes com irritabilidade e agressividade.
Os sintomas motores como a coréia são tradicionalmente tratados com bloqueadores dopaminérgicos, como haloperidol, clozapina, olanzapina, risperidona e quetiapina. O ácido valpróico também tem sido utilizado para controle dos movimentos coréicos e atualmente em alguns centros é a primeira escolha, pois tem um perfil de efeitos colaterais menor do que os antipsicóticos. Atualmente medicações como amantadina (agente antiglutamatérgico) e tetrabenazina (depletor dopaminérgico) têm sido utilizadas no controle dos sintomas motores com boa resposta.
Apesar de o tratamento da disfunção cognitiva da DH ser altamente insatisfatório, estudos atuais utilizando a rivastigmina, um inibidor da acetilcolinesterase, têm mostrado resultados preliminares satisfatórios no controle da progressão da disfunção cognitiva.
Porém, sua utilização ainda não é amplamente aceita. Com a existência atual de estudos clínicos tentando utilizar drogas com teórico efeito neuroprotetor como o riluzole (efeito antiglutamatérgico), a minociclina (tetraciclina com efeito inibidor das caspases) e a coenzima Q10 (efeito antioxidante e co-fator envolvido em mecanismos mitocondriais), aguardam-se resultados mais definitivos para indicação formal do uso de tais medicamentos. Técnicas cirúrgicas como o transplante de células estriatais fetais em estudos preliminares revelaram resultados promissores, inclusive com estudos de imagem funcional mostrando recuperação de atividade metabólica nos pacientes. Esses estudos são extremamente controversos, envolveram um pequeno número de pacientes e atualmente continuam a ser apenas experimentais.
Novas abordagens terapêuticas envolvendo células-tronco com capacidade de se tornarem neurônios ou células gliais ainda são extremamente prematuras e estão longe de aplicação prática para os indivíduos acometidos pela DH. É esperado que nos próximos anos sejam desenvolvidas estratégias preventivas e neuroprotetoras eficazes, mas neste momento devemos nos preocupar em desenvolver abordagens racionais para minimizar os sintomas dos indivíduos portadores de DH e melhorar a qualidade de vida dos pacientes e seus cuidadores.
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